segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Penitência - 3/3

Fico analisando minha vida, tentando definir se tive uma boa vida, se fui uma pessoa boa. Fico em dúvida algumas vezes. Na juventude somos explosivos e acabamos fazendo coisas que neste ponto da vida podem ser facilmente questionadas. Penso, analiso, imagino, mas nunca consigo concluir o que foi minha vida. Nestas lembranças, que são tão fortes, chego a sentir de verdade como eu me senti no momento em que elas realmente aconteceram; só que com alguns novos sentimentos que não existiam naquele tempo. Devem ser da idade, a gente fica mais velho e fica mais cuidadoso, ou mais medroso, sei lá. Sei que fico aqui, revendo meus arrependimentos, meus amores, minhas saudades, minhas decepções, minhas alegrias, minhas tristezas e me perguntando: e agora? Não me orgulho de muita coisa que fiz na vida, mas acho que repetiria a maioria delas. Não sou hipócrita e sei que no momento em que estas coisas aconteceram, eu tinha motivos suficientes que me levaram a elas e hoje seria inocência de mais da minha parte querer julgá-las. Tive meus momentos ruins, mas também tive muitos momentos bons e tento manter estes vivos em mim; só que o mal, meu amigo, ele é persistente e insiste em se fazer presente. Às vezes penso, de verdade mesmo, que estou pagando as coisas ruins que fiz. Fora a idade, não tenho outros motivos para estar aqui deste jeito, sempre tive uma saúde de cavalo. Por isso acho que pago algo, ou tudo. Talvez muitas outras coisas que não vejo como ruins podem ter sido ruins a outras pessoas, não sei... Sei que acho que tudo isso aqui é uma penitência, um acerto de contas antes de ir para o outro lado. Sempre me disseram, e agora assino embaixo, que o que aqui se faz e aqui se paga. Nada fica para ser acertado do outro lado.

Digo que isso é algum tipo de acerto de contas não só por estar entrevado aqui, mas por estar entrevado aqui sozinho. Da minha ex-mulher não tenho notícias há muito tempo. Sinto falta da minha filha, ela não vem mais me ver já faz muito tempo também. Sempre tivemos nossas diferenças, mas nunca deixei de amá-la, mas ela nunca mais veio... Quase nunca conversamos de verdade, sempre discutimos e isso é ruim, dó, sabe? Me lembro de quando ela era menininha, bem novinha, vestidinha para o primeiro dia de aula, com uma carinha de dúvida e medo. Parecia um anjinho com medo. A levei até a porta da sala de aula, ela me abraçou forte como se não fosse mais me largar e eu disse que tudo ficaria bem e que logo eu voltaria para buscá-la. Ela me deu o sorriso mais lindo que já vi em toda minha vida. É este sorriso, esta imagem que fica na minha cabeça. Queria que ela entrasse por aquela porta. Acho que é isso que fico esperando aqui. Toda vez que entra alguma enfermeira, no primeiro momento, meus olhos me enganam me mostrando a minha filha. Acho que esta frustração é uma das coisas que mais me deixa irritado... É... Não é fácil... Queria que ela entrasse por aquela porta com minha netinha para eu poder vê-las mais uma vez. Tenho tanta saudade!

Olha! Os olhos chegam até a molhar... Se ao menos aquele palerma do meu genro resolvesse alguma coisa, mas só servi pra ele enquanto eu dava dinheiro e não problemas.

É isso, a vida em comum é uma troca constante, cada um tem que levar alguma coisa; quando uma parte não tem mais o que oferecer, a outra se vai. Pode até ser que dinheiro não traga felicidade, mas é ele quem a mantém. Quando perdi o que tinha, perdi também minha mulher que levou minha filha e a envenenou contra mim. Agora nem o palerma vem me ver, ninguém vem me ver.

Estou abandonado e não esquecido, pois alguém está pagando a conta desta espelunca, senão já teriam me jogado na sarjeta. Esquecido, meu amigo, é melhor do que abandonado. Esquecer é involuntário; abandonar é caso pensado, sem se esquecer. Às vezes penso que até Deus já me abandonou, se negando a atender meus pedidos de mandar logo aquela desgraçada de preto vir me buscar.

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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Penitência - 2/3

Sabe? Aqui o tempo não passa, ele se arrasta e com muita má vontade. Tem um relógio pendurado na parede que tento ao máximo ignorá-lo, mas acho que por isso mesmo acabo sempre olhando para ele. Quando o tempo não passa olhar para um relógio é a pior coisa que se pode fazer, faz com que o tempo se arraste ainda mais lentamente e a irritação tome conta. Mas os olhos são muito traiçoeiros, nos denunciam aos outros e nos mostram aquilo que não queremos ver. Já até joguei a bandeja de comida nele para ver se eu conseguia quebrá-lo, mas é claro que a bandeja nem chegou perto e ganhei umas boas picadas e alguns dias de sono.

Tento um pouco de tudo para me distrair, mas quase nada é suficiente. É raro eu conseguir um jornal velho, uma revista esfarrapada ou uma cruzadinha antiga. Sempre peço, mas ninguém me escuta. Aliás, escutar escuta porque não é possível que todo mundo aqui seja surdo, mas se fazem de surdos. Às vezes o rapazinho esquisito me deixa alguma coisa e eu leio, releio, leio novamente sem me cansar – até cruzadinhas feitas eu já refiz. Sei que é estranho, mas me distrai um pouco e isso alivia o tempo. E o tempo insiste em ficar aqui comigo. Por mais que eu suplique para ele ir, ele fica. Isso vai me irritando, as dores vão contribuindo e aí, meu amigo, eu viro um bicho aqui, até que todo mundo fica de saco cheio e me apaga por alguns dias. Perco a noção do tempo, não desse que não passa, mas do dia da semana, do dia do mês. A gente fica meio zureta com essa falta de referência de calendário, mas por outro lado não me incomodo muito, não vou pra lugar nenhum mesmo...

O que ainda não perdi é a lucidez, eu acho. Me lembro de tudo da minha vida, me lembro de tudinho, desde menino até hoje. Isso quem garante é o tempo, não o do calendário, mas aquele que se arrasta. Quando ele vem e fica, ele conversa comigo, me conta tudo aquilo que já vivi. Do início ao fim, do fim ao início, do meio para o começo, de cabeça para baixo, de tudo quanto é jeito. Aí é inevitável, acabo me lembrando até de coisas que acho que nunca mais lembraria. Me lembro de quando eu era pequeno, bem menino, de quando eu era adolescente, de quando fiquei mais moço... Parece que sou o mesmo em todas estas fases, como se hoje eu ainda fosse o mesmo menino, no mesmo corpo. Mas as minhas mãos são as primeiras a me trair com suas rugas, com seus dedos tortos, com essas unhas amarelas e contorcidas. Fico aqui deitado revendo minha vida, imaginando as possibilidades, imaginando como seria se certas coisas fossem feitas, se outras fossem feitas de forma diferentes, são tantas coisas...

Escuta! Escuta! Está escutando? É... Um piano! Não sei de onde vem, deve ser de algum apartamento aqui por perto. Vem sempre nesta hora, no comecinho da noite; mas não todos os dias. Pelo jeito de tocar é alguém que está aprendendo ainda, algumas notas engasgam, outras saem do tom, percebeu? Mas para mim soa como um recital! Isso sim é algo que me dá prazer aqui neste lugar. Parece que o mundo para e se restringe a este espaço, nada mais existe e tudo fica em paz, só o piano, escuta!

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Penitência - 1/3

Um conto em três partes, espero que gostem. Na semana que vem, a parte 2.

*          *          *

Já faz algum tempo que estou entrevado nesta maca. É maca sim, cama de hospital não passa de uma maca. Não tem posição que alivie as dores nas costas ou que me dê um pouco de conforto na paciência. Na verdade não faz algum tempo, faz tempo pra caralho! Tanto tempo que nem sei dizer.

Entra dia, sai noite e eu continuo aqui, na mesma situação. Esperando sei lá o quê. Um problema no estômago me jogou aqui, era pra ser temporário, mas sabe como é, a idade ajuda a pesar o corpo e uma coisa leva a outra, um problema some, dois aparecem e por aí vai, estou todo fodido. São tantas coisas que eu passo a ter e deixo de ter que nem sei mais qual é o meu problema atual. Os médicos já não falam mais o pouco que falavam. Se dirigem a mim como se eu fosse um cachorro velho. Vêm, mexem, fuçam, cutucam, viram, apertam, enfiam, espiam, bocejam, anotam e se vão, sem dizer nada. Não me cumprimentam, não me explicam, no máximo um sorrisinho e um tapinha na perna doente. Ou já sarou? Ah, sei lá, não lembro e não importa, tudo dói mesmo. Sei que eles fazem assim comigo, acho que já se acostumaram comigo aqui como se eu fosse parte desta decoração de mau gosto. Eita, povinho pra ter mau gosto! Também não me importo mais em perguntar. Cansei de implorar para conseguir alguma resposta deles. E quando eles resolviam dizer alguma coisa, falavam comigo como se eu fosse um médico. Não entendo merda nenhuma do que eles falam. Então a coisa vai ficando assim: eles vêm, não falam, eu não pergunto e tudo fica bem. Bom, bem para eles que podem ir embora e ter a vidinha deles...

Com os enfermeiros a coisa não é diferente. Só um rapaz baixinho, meio esquisito, que ainda conversa um pouco comigo, às vezes até chega animado com sorriso no rosto e faz alguma piada sem graça, mas que é de boa vontade então eu forço um riso amarelo. Outras vezes ele aproveita e fica um tempo aqui, não comigo, fica no celular dele falando com não sei quem, mas já é uma distração pra mim, sabe? Não pergunto nada sobre a ligação e ele também não diz nada. Fico como se não estivesse ouvindo, mas estou e me divirto um bocado, confesso. Os outros enfermeiros são uns imbecis. Além de não falarem comigo, como os médicos, são grossos e estúpidos na lida. Dão um banho sem-vergonha a cada dois dias, trocam os lençóis uma vez por semana, demoram a trocar meu papagaio, não respondem quando chamo ou quando berro. Quando não consigo segurar, me cago todo na cama, que situação! Demoram pra trazer aquela porcaria de comida e sou obrigado a engoli-la fria, é uma droga. Me regaçam todo, vão embora, não perguntam nem se dói alguma coisa ou se preciso de alguma outra. Meus braços parecem peneiras, estão todos roxos, todos cheios de feridas, pareço um viciado. Esses filhos da puta não conseguem acertar uma merda veia? Só fazem isso, porra!

Ainda tem o meu colega de quarto. Na verdade já se passaram vários por aqui, mas para mim são todos iguais: gemem, vomitam, fedem, reclamam, se curam e se vão. Procuro não conversar muito e nem dar muita atenção. Alguns ficam aqui jogados também, outros têm família que os vem visitar, mas não me importo. Como sempre tem um, então trato como meu colega de quarto e pronto.

Teve um que passou muito mal numa madrugada dessas. Sorte que eu estava meio acordado e fiz um escândalo aqui até aparecer alguém para acudir. Ele não podia falar, não lembro porque, acho que era porque tinha uns tubos enfiados na goela. Mas acho que ele ia bater as botas se eu estivesse dormindo. O pobre infeliz começou a se debater, espumar, virar as bolas dos olhos, tremer, se contorcer... Uma coisa bem feia de se ver... Mas no fim foi embora, então deve ter ficado bem.

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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Oração ao Amanhecer

Pela diária luz primeira aos meus olhos,
Que me garante a certeza da vivência,
Valha eu todos os meus dias.

Que desde meu despertares sobressaiam
O entusiasmo pelo novo à inanimada rotina adquirida,
A ternura de um bem-viver à impertinente maledicência corrosiva,
A compreensão verdadeira à imposição intolerante,
A pacífica temperança à violenta ignorância,
A beleza das coisas aos meus olhos míopes.

Que não me mova a vida, mas que eu a escreva.
Que não venha a sorte, mas que eu conquiste meu mundo.
Que não me roubem os obstáculos, mas que eu os transpasse levando comigo cicatrizes para nunca os esquecer.
Que não me prostre a vida diante da minha infinidade, feito mosca em uma vidraça engordurada de um sufocante apartamento, mas que me permita andar meus caminhos, abrir minhas picadas, encarar minhas encruzilhadas.
Que não aja apenas o verbo, mas aja eu com o verdadeiro sentimento de estar vivo.