domingo, 24 de janeiro de 2016

A Receita da Tia Thereza

Tia Thereza é tia da minha sogra pelo amor ao esposo, irmão do pai da minha sogra. É tia da minha esposa por genealogia e é minha tia por agregação. Mora em Brotas e, além de esposa, mãe e dona de casa, é uma boleira de mão cheia, fazendo deste seu principal ofício. Ouvi-la falar sobre seus bolos é tão prazeroso quanto comê-los –deve ser esse um dos motivos que lhe dá tanto prazer em fazê-los. Estou falando de bolos enormes, de cores, formas, tamanhos, sabores e recheios de todos os tipos, bolos de aniversário, bolos de casamento, de formatura, bolos da tarde, bolos do café da manhã, bolos, bolos deliciosos.

Gosto de pensar que, por tanto tempo nesta lida, ela foi contaminada pelos seus próprios ingredientes, motivo de tanta doçura em uma pessoa só. Por outro lado, toda sua felicidade, bom humor, disposição e firmeza, diante das adversidades da vida, podem ser seus infalíveis ingredientes secretos.

Mas eu queria contar sobre uma passagem que tivemos juntos: estávamos passando um fim de semana com tios e primos da minha esposa. Estávamos em um rancho, no rancho do tio Sérgio, à beira do rio Tietê em Pederneiras. Não me lembro como ou porque, mas eu e o Juninho, filho do tio Sérgio, estávamos sentados com a tia Thereza, debaixo da mangueira, ao lado da piscina. Fazia muito calor e ela estava lá se refrescando à sombra. Conversa vai, conversa vem, ela começou a nos contar da sua vida com o tio Arlindo, seu marido que falecera havia pouco tempo. Ela nos contava o como havia sido boa sua vida ao lado dele. O como ele a ajudava com os bolos nas compras, organização e preparos dos ingredientes; o como ele a ajudava a desenformar os bolos; da sua habilidade para cortar as camadas que seriam recheadas e novamente empilhadas, o quanto ele era um pai amável e um marido companheiro. Como foi quando se conheceram, quando se casaram, quando tiveram o filho José Luiz. Passamos um longo e agradável tempo ouvindo-a contar, com seu jeito doce, voz macia, gestos ágeis, olhos atentos e emocionados, sobre uma vida praticamente perfeita, ao lado de um esposo praticamente perfeito, que ela resumiu:

- Nossa vida foi muito boa, só teve coisas boas!

Foi emocionante ouvir toda aquela história. Também achei bonito ela terminar com esta afirmação de que só “teve coisas boas”. Mas também achei exagero, confesso. A vida não é fácil, vive nos apresentando dificuldades, nos pondo à prova; ainda mais na convivência de um casal. Ponderei e resolvi entender como um saudosismo de uma doce senhora que acabara de tomar um grande golpe da vida, que preferia contá-la assim, a se conformar e também a honrar o que haviam vivido.

Então, ao notar nossas inexperiências estampadas em nossos rostos, ela nos olhou diretamente nos olhos, com uma expressão séria e, num tom firme e didático, disse, pausadamente:

- Nossa vida só teve coisas boas! Não teve nada ruim!

Sem ter o que dizer e percebendo a insistência exatamente neste ponto, apenas concordei com um “Que bom, né tia?”. Inocente eu, sábia ela!

Tendo garantido nossa atenção, ela recostou-se na cadeira, retomou a doçura do olhar, mas sem perder a firmeza na voz:

- Nossa vida só teve coisas boas... porque as ruins a gente esquece!

E para mim aquilo foi como que um soco no estômago! Não era saudosismo nem conformação alguma, mas uma forma inteligente, sábia, de se entender com a vida. Algo tão simples e tão forte que fez tantas mágoas, ressentimentos, tristezas e rancores passaram pela minha cabeça naquele exato momento! Tantas coisas ruins carregadas no coração. Tanta energia gasta remoendo inutilmente o passado. Tantas culpas, tantas acusações, tantos arrependimentos, tantos aborrecimentos que ainda estavam vivos dentro de mim!

Isso mexeu muito comigo! Algo tão simples, tão forte, tão verdadeiro, tão fácil! Desde então, tento manter isso vivo comigo, como uma lei, um dogma. Tento viver isso de verdade, tento deixar exposto em mim. Tenho levado para alguns textos, alguns contos, contado para amigos e para familiares.

Menos do que deveria é o quanto aplico nos meus dias, mas me esforço para que seja cada vez mais. Enquanto isso, mantenho vivo em mim este eco que garante a continuidade: “As ruins a gente esquece! As ruins a gente esquece! As ruins a gente esquece!”

Esta receita serve todas as pessoas e rende sorrisos e união! Sirva à vontade!