terça-feira, 24 de agosto de 2010

Num Cigarro

No complexo momento em que as ideias nada mais são que um amontoado de pensamentos desconexos e ininteligíveis,
Em pleno passeio, ao muro recostado, incendeia a chama impiedosa o tabaco pilado,
Que, em brasa, faz pairar a tranquilidade e restitui a consciência.

Bem à frente, entupida e transbordante, jaz a infartada larga avenida,
Cortada em duas contradições pelo estreito canteiro de pouco gramado e muito rosado das flores que neste tempo já terminam.

Do lado de cá, por entre buzinas e pneus estressados que gritam aos céus por clemência,
Acham-se heroicos e verdadeiros sorrisos e olhares trocados nas cabinas e por entre as janelas,
Paradoxais à cena, mas relutantes ao nervoso fluxo geral.

No de lá, disso nada se pode pela distância ver,
Senão a irritação manifestada por insultos despejados a todos os lados, aos bruscos movimentos dos veículos que contrariados abrem egoístas e miseráveis alas à suplicante sirene, que em histeria anuncia a caminho a possível salvação que já tarda.

E com a nitidez retomada pela ausência da névoa acinzentada,
Recobra-se a consciência do retorno à realidade própria,
Repõem-se os pensamentos aos deveres suspensos,
E tudo simplesmente fica para trás, abandonado, como se nunca tivesse sido.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ponto de Ônibus

Tantas são as luzes e os dizeres que vêm,
Mas demorados os tão desejados e implorados,
Os que realmente vêm e salvam.

E por entre o tão longo precioso tempo desperdiçado [ouro da vida],
Suportam-se cambaleantes e clementes os corpos
Estressados,
Escorados,
Resfriados,
Desajeitados,
Abandonados.

E ao sabor do ócio temperado pela impotencialidade da submissão laboriosa,
Rebelam-se dementes e imprudentes as mentes
Irritadas,
Aniquiladas,
Desgastadas,
Inutilizadas,
Depravadas, até.

E sob a ânsia desesperada de um reles sossego e morno afago da morada,
Amarguram-se palpitantes e deprimentes os corações
Entristecidos,
Esquecidos,
Desmerecidos,
Vencidos,
Mas nada adormecidos.

E quando, providencial e tardiamente, é chegada a salvação,
Estes, unidos e agarrados, sucumbem à inesquecível e irrefutável certeza da mesma penitência, que é breve em se iniciar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Condenado a Viver

Na noite em que ele, pela primeira vez, falhou
Os céus se abriram e ele foi excomungado, sob fraternos açoites desaprovadores, clementes orações dilacerantes e traidoras maldições irreversíveis.

Condenado a vagar sem descanso e sem morada,
Pavorosamente deformado e reprovado,
De pele escamada e enrugada, cauda e asas asquerosas,
Unhas longas e amareladas como os repugnantes cornos ostentados,
Caiu, somente consigo próprio, repudiado de sigo próprio.

Errante, pôde sorrir, aprendeu a viver e fez seu caminho.

E quando, às gargalhadas, cirandava pueril por entre as crianças da aldeia,
Aqueles de outrora o espiavam invejosos detrás das árvores do bosque escuro.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Radical

Meu amigo Léo Monçores tirou este conto do fundo da gaveta e nos propõe momentos inusitados encontrados na realidade em que nos encontramos. Perpetuar por entre tudo isso é quase magia!

          Ele estava entediado em mais um daqueles dias que se arrastavam no trabalho. Gostava do que fazia, mas achava que gastava tempo demais do seu dia fazendo coisas que não levavam a nada. A vida em família era boa, tinha tudo que precisava, mulher, filhos, uma casa, que ainda estava pagando, e um carro, que poderia ser um pouco mais novo, mas, atendia suas necessidades. Podia se considerar uma pessoa quase feliz e realizada, podia?

          Foi então que resolveu mudar radicalmente. Não iria mais fazer só o que queriam que ele fizesse, não ia mais deixar de fazer nada que lhe era prazeroso para agradar a ninguém, de agora em diante agradaria a si próprio e se preocuparia apenas com ele mesmo. Imediatamente, inventou uma desculpa e saiu do escritório disposto a radicalizar. Passou no banco, tirou tudo o que tinha na conta, que era pra ter algum no bolso, “se precisar, pago com o com o cartão novo que o banco me enviou, com um limite muito maior”, pensou. Entrou no fast food da esquina e pediu o sanduíche mais calórico, batatas duplas, refrigerante enorme e sorvete, o maior, de sobremesa. Pronto, estava dando o primeiro passo em direção à liberdade.

          Depois do “lanche” foi até o shopping e, sem avaliar muito, como era de costume, comprou aquele tênis de marca de tanto apreciava, a camisa cara que à qual tanto resistira, a calça com o melhor corte, e o maior preço. Saiu da loja de roupas e entrou na joalheria decidido a comprar aquele relógio de caixa preta, último modelo da marca famosa, e também o mais caro. Pronto, mais um desejo realizado.

          Ao sair do “templo do consumo” passou em frente a uma concessionária de automóveis, entrou. A avaliação do seu carro não foi a esperada, mas mesmo assim, não resistiu e fez negócio, levaria a pick up, aquela vermelha, com motor turbo e completa. Pena que só entregariam na semana que vem, quando descontassem o cheque, mas tudo bem, tinha mesmo que transferir o dinheiro da poupança (todo) para isso.

          Já era tarde, a noite caindo, era hora de ir naquele restaurante, que nunca conseguia ir, por causa das crianças, a mulher, os preços, o horário e etc... Entrou, foi muito bem atendido é claro, comeu e bebeu muito bem, ficou satisfeito e foi embora pensando porque não levava aquela vida, já que era o que realmente lhe dava prazer. Agora sim estava feliz, mas, de repente, lembrou que teria que voltar para casa, para a mulher, que até era bonita, mas já sentia o peso da idade e da vida atribulada, cuidando dos filhos, da casa e dele também.

          Foi então que tomou a decisão mais radical de todas. Não voltaria, simples assim. Porque adiar mais essa decisão que ele tinha certeza que já devia ter tomado há muito tempo? Era isso, sua vida seria outra, mais prazer, mais alegrias e muito mais coisas interessantes para fazer, ia conhecer novas pessoas, novos ambientes e, claro, muitas mulheres que não iriam ficar lhe cobrando o tempo todo e perturbando com assuntos como a escola das crianças, a conta de telefone, o frango para o almoço de domingo ou o presente da mamãe.

          Pensou isso parado em um sinal de trânsito, foi quando escutou a voz jovem e nervosa, “sai logo e deixa a chave na ignição”, um segundo depois, ao tentar abrir o cinto, só escutou o barulho e não viu mais nada. Levaram-no para o hospital, mas não resistiu.

          A viúva inconsolável não entendia como podiam ter feito aquilo com um trabalhador, que vivia para a família, não tinha vícios e era exemplo de pai e marido.

          A polícia não entendeu, mas, com a vítima, havia um relógio de luxo e a carteira intacta, com talão de cheques e duzentos reais. Deve ter sido execução, dizia o delegado.

          Radical!

          E a fatura do cartão de crédito ainda não chegou...


Por José Leonardo Cabral Monçores