quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Um Pouco Além de Mim

Quisera eu me assentar num lugar meu, onde pudesse respirar meu próprio ar,
Preencher-me dele e somente dele, puro ou podre, mas meu
A me limpar do alheio, a me distinguir de mim mesmo.

Em uma praia idealizada, talvez, onde pudesse apenas estar,
Sem nada me rondar e sem nada estragar com meus quereres que somente eu entendo, mas deles nada sei contar,
Pondo-me a assistir e sentir os ires e vires dos meus pensamentos e desejos – incontáveis, mas de mesma essência –,
Sem que aos meus ouvidos chegasse nada que não fosse o vazio da ausência ou o estrondo de minha própria proliferação em mim mesmo.

E ainda, quisera eu, e muito, dos céus deste mesmo lugar descer e diante de mim, sentado à areia, pairar,
Assistindo-me, sendo eu comigo mesmo e, talvez, quem sabe, um pouco saber deste meu eu: turbilhão de um tudo que se desfaz em deformados amontoados deslizantes.

Talvez assim, com um pouco deste saber, poderia eu, enfim, dar a mim mesmo, com tão buscada e compensatória dedicação, aquilo que se restringe aos limites do seu próprio ser: a verdadeira compreensão.

Pois são os mesmos lábios molhados os que beijam e os que maldizem,
São as mesmas mãos protetoras as que espancam e as que afagam,
São os mesmos olhos brilhantes os que desejam e os que condenam,
É a mesma língua lasciva a que excita e a que dilacera o coração.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Enfim, Só...

Há tempos vivendo desiludida em uma fétida mediocridade, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, da semana para a cama, da cama para a sala, da sala para o mesmo, do fim para a lida;

Sem nem mesmo uma sombra a lhe acompanhar, longe do que um dia foi ninho rodeado do que nunca foi família, com nem meia dúzia de seres menos ausentes, raramente presentes, que a carregavam por caridade, em meio a tantos outros milhões, que como todos os outros tantos nem a notavam;

Humilhada por tanto sem jeito um recosto mendigar, um único toque alheio que lhe pudesse acalentar – quiçá repugnar, ao menos seria algo – por míseros instantes que fossem, e nada encontrar por tudo a negarem e de tudo negar-se;

Cansada de tanto caminhar e a lugar nenhum chegar, nem de lugar algum sair, sendo só consigo mesma, na própria vida, entre tantos – mas nunca digna de ser só em ser só;

Ela, enfim, deu-se por derrotada e rendeu-se ao inevitável já anunciado:
Soltou as mãos, lançou para trás os braços e entregou-se ao vento frio da madrugada que lhe lambeu reconfortantemente todo o corpo que descia majestosamente desprendido pelo alívio de toda uma vida.

Poucas foram as lágrimas que se precipitaram por sua partida; e repente foi o tempo que pairou por sobre o mundo a sua memória.


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A Arte de Viver

       Há algum tempo, não muito, num sábado, minha mãe veio a São Paulo com amigas de trabalho, professoras, em uma excursão à região da Rua 25 de março, para as tradicionais compras populares. Aproveitamos a oportunidade para nos vermos e marcamos um encontro, após as compras é claro, no Mercado Municipal, para um saboroso e gordo lanche de mortadela.

       Considerando o trânsito, peguei meu carro e me pus a caminho de lá bem antes da hora. Isso mesmo! Para quem não sabe, fica aqui a dica, São Paulo, aos sábados, entre as dez e quatorze horas, tem trânsito muito complicado, principalmente na região central e suas principais vias de acesso. Trânsito este talvez não tão divulgado pela falta de compromissos laboriosos que realmente, e infelizmente, são os que valem alguma coisa hoje em dia em nossas vidas. Mas lá estava eu, em meio a tantos outros, me arrastando pela Avenida do Estado, cada vez mais lento conforme me aproximava da Avenida Senador Queirós, conversão para o Mercado Municipal, a partir da qual, diga-se de passagem, seguindo adiante, nada havia senão o ondulado e falho tapete de asfalto.

       Mas como dizia, lá estava eu, no vai e para, passando sob viaduto da linha vermelha do metrô, a olhar para os lados, para os cantos, para as pessoas – mania minha – e, entre imundices e subumanidades, me deparei, bem ao meu lado, com uma barraca. Não um barraco, mas uma barraca, feita por um emaranhado improvisado de arames, cordões, canos de ferros descartados e tortos cobertos por uma mal remendada lona amarela, no tradicional estilo canadense. Era uma barraca bem comprida, o que também me chamou a atenção, e estava rodeada por bugigangas, lixo e artefatos de uso inexplicável, mas prováveis sentimentos e valores compreensíveis. A extensa vida útil da lona lhe permitia uma transparência sutil e desfocada, mas suficiente para permitir identificar os contornos das pilhas de objetos – e quantas –, aparentemente mantidas como mobílias de uso e decoração. Em uma das extremidades, talvez a que pudesse ser chamada de fundos, havia uma pequena fogueira sob algo que parecia uma panela fumegante, pendurada a uma rústica armação de ferro. Mas ninguém havia. Talvez estivessem dentro de um dos cômodos da barraca a conversar, ou estirados a dormir – o que não se podia confirmar nem mesmo pela transparência –, ou simplesmente tivessem saído, mas não se via uma alma vívida.

       Entretanto, era na outra extremidade, na que seria a entrada, que estava o que mais me chamara a atenção e muito me surpreendeu em toda esta cena, a ponto de me fazer perder a atenção para o que fazia, conduzir meu carro ao encontro da minha mãe: na ponta da barraca, cuidadosamente dependurado de forma a decorar a fachada, havia um quadro! Um quadro pequeno, gasto pelo tempo e pela descuidada exposição ao clima. Quase não dava para reconhecer a pintura em si, mas via-se que era uma cena rural, o retrato de uma casa campestre ao lado de um pequeno lago. Enfim, era um quadro, um quadro dependurado na entrada de uma barraca improvisada à margem do Rio Tamanduateí, ao lado da Avenida do Estado, salpicada por detalhes e gostos que pudessem lhe atribuir a mínima sensação e aparência de lar, extrapolando sua essência de abrigo.

       Tudo foi muito rápido. Tão logo as buzinas me alertaram da distância aumentada entre meu carro e o da frente, tive que continuar. Apesar de parecer bem instalada, não estava mais lá na segunda-feira seguinte e nunca mais a encontrei, nem o quadro. Ainda os procuro quando por lá passo, mas ficou apenas na lembrança. A encantadora e deliciosa lembrança de encontrar a magia da arte naquelas vidas, que só fez representar e enaltecer outra obra ainda maior: a arte deles em viver, que leva ternura onde predomina a dor e o descaso!

       Ah, o lanche com minha mãe foi muito bom!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Querência de Você

Por entre risos e deleites brotados, a mundos de distância,
Pelo delicioso saborear ondulante da vivência plena de tão sonhados sonhos pueris,
Apresentou-se, palpitando no peito meu, entre descoordenadas linhadas e antigas rimas sertanejas, a inevitável e já sabida querência,
Mas em, até então, desconhecidos teores, cores e intensidades.

Querência esta que, num sem se perceber, ainda que percebido, mas sob o inútil disfarce de distrações colhidas e forjadas,
Nutrindo-se do teimoso tempo, que pelos cantos lento escorria,
Tomou sua mais primitiva e inquietante forma,
Irrompendo peito a fora, tingindo com sua supremacia todo o meu todo.

E como esta saudade, que nunca deixou de ser, em sua mais bela e pesarosa essência,
Fundamenta, nas mais entranhadas e profundas vísceras,
Os mais verdadeiros e intensos sentimentos de bem-querer
Que, mesmo depois de alucinadamente rasgados intermináveis e revoltantes quilômetros, não se entregam e nem vacilam ao tão buscado encontrar-lhe,
Apenas transbordam intensa e prazerosamente ao indescritível e insaciável abraço seu, enquanto entorpecem meu corpo cansado com os mais suculentos e apaixonados beijos seus.