sábado, 27 de setembro de 2008

Menina da Vida

São os primeiros raios de sol
Que revelam seu corpo estirado,
Sob pedaços de jornais e papéis surrados,
Por entre galhos do jardim da praça.

Corpo que já foi de menina,
Hoje é nem de mulher.
Usado, espancado e lambuzado
Por demônios que lhe violam na noite.

Corpo fedido, objeto podre,
Latrina de vagabundos
Que nele despejam
As mais repugnantes pestes.

Corpo doente, revestido de feridas
Incrustadas, vazantes de pus
Que ressecam na sujeira
Encarnada em seu couro.

Corpo peneirado pelas picadas,
Pútrido pelas pedras que derrete,
Atrofiado pela cola que inala,
Calejado pela violência que lhe cerca.

A inocência nunca lhe visitou,
A infância lhe foi roubada,
De boneca nunca brincou,
Brincaram.

A face nunca maquiará,
Produzida nunca estará,
Desejada nunca será,
E esposa nunca terminará.

Está condenada por toda vida [se é vida]
Pelo crime de ter nascido.
Agora me enoja deitada e manchada
Pelo seu feminino vermelho mensal.

domingo, 21 de setembro de 2008

Jardineiro Vazio

Pica terra pilada!
Sinta meu enxadão
Que brutalmente te viola.
Umedeça-te ao meu suor
Digno do dinheiro do patrão.

Enriqueça teus torrões estéreis
Com o esterco fresco que te presenteio.
Deleita-te com a água que te banho,
Sede não mais sentirás.

Abra-te para minhas sementes e mudas.
Receba-as como filhas.
Aconchega-as em teu ventre
E as faça crescer fortes e viçosas.

Venham pequenos brotos,
Sejam bem-vindos a este mundo cinza.
Despontem-se, brinquem ao sol, pequeninos.
Abram tuas folhas ao vento.

Definhem entorpecidos com o fumo
Pulgões malditos.
Apodreçam ervas daninhas,
Sufoquem-se no veneno letal.

Às pestes que ousam invadir o jardim:
Eu as excomungo desse mundo!

Desabrochem frágeis botões.
Banhem-se ao sol morno.
Sacudam tuas gotículas de orvalho
Que cheias de vida refletem um mundo todo.

Abram-se, tímidas pétalas aveludadas.
Transformem-se em coloridas flores delicadas
Embelezem nossa vista, façam a paisagem,
Como pequenas virgens saboreando o vento.

Pairem tuas fragrâncias sedutoras
Para que transbordemos nossos corações
Dos mais deliciosos e nostálgicos sentimentos.

[Suspira o jardineiro, contemplando o jardim com o peito amargo]
Mas de que me adiantam as flores
Se as raízes não possuo?

domingo, 14 de setembro de 2008

O poeta Rinaldo Aranha nos presenteia com "O Vôo da Mariposa"

Cai a noite na selva de pedras. O espelho pendurado na parede reflete os faróis apressados, como vaga-lumes entrando pela janela da quitinete. Já é hora da mariposa sair do seu casulo. De salto alto, desce a escadaria do arranha-céu para o costumeiro vôo noturno. Sobrevoa os calçadões do centro até o último andar das mais altas copas. Rola num leito de flores e em vários leitos de espinhos. O giroflex vermelho do camburão ofusca seus atentos olhos. Atordoada, atravessa a nevoa da soturna madrugada num vôo rasante sobre um rio etílico. A cada gole de conhaque suga uma refrescante seiva. Na solitária viagem, aspira a poeira de um caminho de terra branca. Então encorajada, bate suas asas para o mais alto dos vôos. Estonteantemente rápida, passa por faces retorcidas, desvia dos fios de alta tensão, bate em todas as janelas fechadas até o último andar e ultrapassa a torre de TV. Mais adiante, acaricia a mata das montanhas num confortável tapete persa e já pode ver a trilha das formigas. Em rodopios, cada vez mais altos, percebe o contorno do globo terrestre na curva da sua esquina. Fascinada pelo brilho das estrelas, repentinamente é alvejada por uma chuva de meteoritos com cheiro de ovo podre, que deixam suas marcas na sarjeta. Na lâmina do canivete que saca da bolsa, escorrega por toda Via Láctea, caindo num buraco negro. E lá, no fim da trilha, às vezes encontra Deus, pousando no peio de um homem desconhecido. Outras vezes encontra o Diabo com uma bomba de inseticida nas mãos.

sábado, 6 de setembro de 2008

À Deriva

Atenta-te, nobre capitão!
Não vês que por águas traiçoeiras
Tripulas sozinho tua nave?

Acalmas o coração,
Aceitas a tua sina.
Não há como guiar-se,
Não estás numa canoa.

Teus homens já não estão,
Tuas velas em frangalhos,
Teus mapas borrados [queima-os e te aqueças].

As estrelas dançam uma valsa sarcástica
Sobre a densa névoa da madrugada.
Entrega-te à deriva.

Não adianta acenares o lampião,
O farol é intermitente e voluntário
E nesta noite não quer te responder.

Conforta-te, fizeras tudo que podia!
Beba teu rum, reze tua unção, salte da prancha,
Mas não espere pelo farol.

Nas rochas baterás antes do amanhecer.
Ninguém virá a seu socorro,
Talvez piratas ao que restar.

Náufrago nunca serás,
Pois já és cadáver, nobre capitão.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O Poeta Adauto Siqueira propõe "Vazio"

Tenho o hábito de habitar vazios
Tais como:
becos escuros
terrenos baldios
estradas vicinais.
Dizem que isso é prenúnico de loucura,
Nem ligo, e saio pelos campos aprisionando ventos.