segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Devida Proteção

Ressurgindo das cinzas: desce mais uma!


Há alguns dias, voltando para casa, eu parei o meu carro sob a luz vermelha de um cruzamento próximo de casa, em uma praça emaranhada por pequenas ruas disformes. Era começo de noite, já escuro, temperatura amena, bem aconchegante. Aproveitei a parada para me espreguiçar como podia dentro do carro – mudar um pouco a posição que era a mesma da última parada na estrada. Passei os olhos pela vista e à minha direita, iniciando a travessia da ruela adjacente, já sob a faixa de pedestres, vinha uma senhora de idade bastante avançada e com sérias dificuldades para se locomover. Vinha a passos frouxos e incertos, quase que tateando o asfalto antes de firmar-se sobre cada pé. Abaixo de um pequeno e delicado gorro pendiam cabelos grisalhos e cansados, não muito longos e indecisos quanto à forma a ser tomada. Usava óculos de armação preta e antiga. Vestia uma blusa de lã grossa, uma longa saia que mantinha certa elegância, grossas meias e sapatinhos pretos – daqueles das vovós e que há muito não via. Escorava-se em uma espécie de bengala que prolongava seu corpo e terminava em quatro pequenos pés, o que lhe dava mais precisão e confiança ao apoio, mas também denunciava uma maior fragilidade em manter-se em pé do que se podia perceber. A dificuldade em atravessar a rua era grande e de cortar o coração. Arrastando-se e esforçando-se, ela escalou a calçada e terminou a travessia alguns segundos depois do semáforo disparar as buzinas atrás de mim.

É triste ver uma pessoa após uma longa vida ter que viver sob situações deste tipo, que transformam um simples e corriqueiro atravessar de rua em uma complexa e dispendiosa tarefa. Contudo, definitivamente, não foi a dificuldade daquela senhora que me chamou a atenção e me fez buscar o desfecho pelo retrovisor do carro; mas aquilo que permitia que ela fizesse todo o percurso apenas preocupando-se em manter-se em pé e adiante. Em momento algum ela olhou para os lados ou levantou a cabeça, ou se preocupou com a mudança do semáforo ou, ainda, se algum outro carro vinha disputar a passagem. Durante toda a travessia, durante todo o tempo, ela estava cercada por uma das mais bonitas, confiáveis e mais respeitáveis proteções que já vi: a de seu esposo!

Era um senhor muito bem apresentado. Tinha uma respeitável postura de movimentos ágeis. Não era luxuoso, mas elegante. De calça e camisa sociais cuidadosamente dispostas, sapatos engraxados e reluzentes e um paletó escuro que completava a firmeza de sua figura. Durante todo o percurso da esposa, ele estava em pé ao seu redor, acompanhando sua travessia a passos firmes e gentis. Ia de um lado para o outro, girando sobre o próprio eixo, mas de forma planejada e articulada, conforme a evolução da situação demandava. Tinha olhares e gestos de atenção e orientação aos que aguardavam o semáforo e, apesar da agilidade, em momento algum teve movimentos abruptos ou questionáveis. Estava certo de si e do que fazia. Marcou-me quando olhou em minha direção – que pareceu olhar diretamente dentro dos meus olhos – e gentilmente espalmou a mão esquerda em sua altura normal com o braço próximo, mas não junto, ao corpo. Assim, pedia a atenção e o cuidado dos demais, estabelecendo o perímetro que lhes era necessário. E já próximo ao fim da travessia e também da mudança do semáforo, posicionou-se ao lado da esposa, mas de costas para ela e frente para o que viesse. Colocava seu corpo diante de qualquer perigo que pudesse, ainda desavisado, aproximar-se dela. Foi quando as buzinas me fizeram continuar meu caminho e os faróis ofuscaram os detalhes no meu retrovisor.

Fiquei realmente encantado com a serenidade e a firmeza daquele senhor, elegantemente misturadas à sua gentileza e calma, dando toda a proteção necessária para sua senhora “atravessar a rua”. E o grande ponto de tudo isso não é a proteção em si, mas o como ela era dada. Todos nós protegemos quem gostamos – e mesmo que apenas nos convém –, mas existem diversas formas de proteger. A proteção pode sufocar o protegido e até o protetor. Pode tornar-se uma arma contra os envolvidos. E neste caso a proteção era providencialmente aplicada – e posso dizer, sem nenhum remorso, invejável.

Apesar de poder, em momento algum ele a tocou, ela a guiou ou ele a equilibrou. Não! Ele apenas deu as condições que ela precisava para fazer o que tinha que ser feito. Não é uma proteção que guia, que faz, que domina, ou que aprisiona; mas uma proteção que permite que as coisas aconteçam por si só, da melhor maneira que o protegido possa fazer. E, por isso, ela podia, literalmente, caminhar com as próprias pernas, concentrando-se e dedicando-se ao que precisava fazer, mas sabendo o tempo todo que ele estava ali, para ela e por ela.

É pelo respeito ao protegido que digo que esta proteção é respeitável. E insisto: completamente invejável e desejável. Quando crescer, quero ser como ele! (Melhor correr, já estou atrasado!)

6 comentários:

  1. Simples, direto e cheio de sentimento!
    É isso que todos nós queremos, uma proteção despretensiosa, sincera e que não sufoque.
    Gostei muito Rafa.

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  2. É Graci....coisas simples que acabamos atropelando; não por maldade, mas simplesmente por querer bem, por querer estar perto e fazer parte.

    Fico contente que tenha gostado!

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  3. Sou apaixonada pelos idosos, eles acrescem tanto em nossaas vidas, mas infelizmente aqui no nosso país são raríssimas as pessoas que os respeitam como eles merecem.
    Você é uma dessas raras pessoas!
    E eu insisto em dizer que a pessoa que dizemos que mais amamos nesse mundo é também a mais idosa de todas, Deus Pai!
    Beijos
    Cris.

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  4. É tia....temos tanto para aprender com eles...e eles já aprenderam tanto e na maioria das vezes os vemos colocados e tratados como inúteis e colocados à margem...apenas aguardando o fim.

    Foi muito bonita esta cena!

    Beijos....

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  5. Obrigado!! Fique à vontade por aqui!!

    Abraço...

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