Ressurgindo das cinzas: desce mais uma!
Há alguns dias, voltando para casa, eu parei o meu carro sob a luz vermelha de um cruzamento próximo de casa, em uma praça emaranhada por pequenas ruas disformes. Era começo de noite, já escuro, temperatura amena, bem aconchegante. Aproveitei a parada para me espreguiçar como podia dentro do carro – mudar um pouco a posição que era a mesma da última parada na estrada. Passei os olhos pela vista e à minha direita, iniciando a travessia da ruela adjacente, já sob a faixa de pedestres, vinha uma senhora de idade bastante avançada e com sérias dificuldades para se locomover. Vinha a passos frouxos e incertos, quase que tateando o asfalto antes de firmar-se sobre cada pé. Abaixo de um pequeno e delicado gorro pendiam cabelos grisalhos e cansados, não muito longos e indecisos quanto à forma a ser tomada. Usava óculos de armação preta e antiga. Vestia uma blusa de lã grossa, uma longa saia que mantinha certa elegância, grossas meias e sapatinhos pretos – daqueles das vovós e que há muito não via. Escorava-se em uma espécie de bengala que prolongava seu corpo e terminava em quatro pequenos pés, o que lhe dava mais precisão e confiança ao apoio, mas também denunciava uma maior fragilidade em manter-se em pé do que se podia perceber. A dificuldade em atravessar a rua era grande e de cortar o coração. Arrastando-se e esforçando-se, ela escalou a calçada e terminou a travessia alguns segundos depois do semáforo disparar as buzinas atrás de mim.
É triste ver uma pessoa após uma longa vida ter que viver sob situações deste tipo, que transformam um simples e corriqueiro atravessar de rua em uma complexa e dispendiosa tarefa. Contudo, definitivamente, não foi a dificuldade daquela senhora que me chamou a atenção e me fez buscar o desfecho pelo retrovisor do carro; mas aquilo que permitia que ela fizesse todo o percurso apenas preocupando-se em manter-se em pé e adiante. Em momento algum ela olhou para os lados ou levantou a cabeça, ou se preocupou com a mudança do semáforo ou, ainda, se algum outro carro vinha disputar a passagem. Durante toda a travessia, durante todo o tempo, ela estava cercada por uma das mais bonitas, confiáveis e mais respeitáveis proteções que já vi: a de seu esposo!
Era um senhor muito bem apresentado. Tinha uma respeitável postura de movimentos ágeis. Não era luxuoso, mas elegante. De calça e camisa sociais cuidadosamente dispostas, sapatos engraxados e reluzentes e um paletó escuro que completava a firmeza de sua figura. Durante todo o percurso da esposa, ele estava em pé ao seu redor, acompanhando sua travessia a passos firmes e gentis. Ia de um lado para o outro, girando sobre o próprio eixo, mas de forma planejada e articulada, conforme a evolução da situação demandava. Tinha olhares e gestos de atenção e orientação aos que aguardavam o semáforo e, apesar da agilidade, em momento algum teve movimentos abruptos ou questionáveis. Estava certo de si e do que fazia. Marcou-me quando olhou em minha direção – que pareceu olhar diretamente dentro dos meus olhos – e gentilmente espalmou a mão esquerda em sua altura normal com o braço próximo, mas não junto, ao corpo. Assim, pedia a atenção e o cuidado dos demais, estabelecendo o perímetro que lhes era necessário. E já próximo ao fim da travessia e também da mudança do semáforo, posicionou-se ao lado da esposa, mas de costas para ela e frente para o que viesse. Colocava seu corpo diante de qualquer perigo que pudesse, ainda desavisado, aproximar-se dela. Foi quando as buzinas me fizeram continuar meu caminho e os faróis ofuscaram os detalhes no meu retrovisor.
Fiquei realmente encantado com a serenidade e a firmeza daquele senhor, elegantemente misturadas à sua gentileza e calma, dando toda a proteção necessária para sua senhora “atravessar a rua”. E o grande ponto de tudo isso não é a proteção em si, mas o como ela era dada. Todos nós protegemos quem gostamos – e mesmo que apenas nos convém –, mas existem diversas formas de proteger. A proteção pode sufocar o protegido e até o protetor. Pode tornar-se uma arma contra os envolvidos. E neste caso a proteção era providencialmente aplicada – e posso dizer, sem nenhum remorso, invejável.
Apesar de poder, em momento algum ele a tocou, ela a guiou ou ele a equilibrou. Não! Ele apenas deu as condições que ela precisava para fazer o que tinha que ser feito. Não é uma proteção que guia, que faz, que domina, ou que aprisiona; mas uma proteção que permite que as coisas aconteçam por si só, da melhor maneira que o protegido possa fazer. E, por isso, ela podia, literalmente, caminhar com as próprias pernas, concentrando-se e dedicando-se ao que precisava fazer, mas sabendo o tempo todo que ele estava ali, para ela e por ela.
É pelo respeito ao protegido que digo que esta proteção é respeitável. E insisto: completamente invejável e desejável. Quando crescer, quero ser como ele! (Melhor correr, já estou atrasado!)
Simples, direto e cheio de sentimento!
ResponderExcluirÉ isso que todos nós queremos, uma proteção despretensiosa, sincera e que não sufoque.
Gostei muito Rafa.
É Graci....coisas simples que acabamos atropelando; não por maldade, mas simplesmente por querer bem, por querer estar perto e fazer parte.
ResponderExcluirFico contente que tenha gostado!
Sou apaixonada pelos idosos, eles acrescem tanto em nossaas vidas, mas infelizmente aqui no nosso país são raríssimas as pessoas que os respeitam como eles merecem.
ResponderExcluirVocê é uma dessas raras pessoas!
E eu insisto em dizer que a pessoa que dizemos que mais amamos nesse mundo é também a mais idosa de todas, Deus Pai!
Beijos
Cris.
É tia....temos tanto para aprender com eles...e eles já aprenderam tanto e na maioria das vezes os vemos colocados e tratados como inúteis e colocados à margem...apenas aguardando o fim.
ResponderExcluirFoi muito bonita esta cena!
Beijos....
Muito bom.
ResponderExcluirParabéns.
Obrigado!! Fique à vontade por aqui!!
ResponderExcluirAbraço...