O sol já passava do meio do mundo quando ele retomou os ingredientes, disposto a cumprir a tão espedaçada promessa de uma decente refeição dominical.
Os ânimos enrijeciam os nervos e a faca descia lenta, as mãos se arrastavam desajeitadas e a atenção não existia, mas a receita seguia.
Arrastou o tempo o quanto pôde e, entre desligares de fogo e pequenos afazeres inventados no último momento, conseguiu preparar seu prato, com o acompanhamento já frio.
A mesa estava posta e decorada com migalhas das últimas duas semanas.
Sentado à ponta, com um garfo torto escorado à mão, viu-se um rei sem reinado.
Ouvia as gargalhadas das crianças brincando no pátio gelado sob o pálido sol de inverno que custava a adentrar pelas vidraças embaçadas e cortinas encardidas.
O ar era velho e denso de angústia e vapores oleosos das panelas cansadas e condenadas ao gotejar da pia transbordante.
Olhou em volta: tudo era o que sempre fora, como sempre estivera, no mesmo lugar, do mesmo jeito que deixara.
E o coração se espremeu quando, relutante, conformou-se que somente compartilharia o tão digno momento da refeição com o chiado rouco do velho rádio a pilhas na cozinha.
Derrotado, fraquejou a mão e tombou o garfo.
Abandonou o prato gelado na despensa e o corpo cansado aos trapos sujos no canto da cozinha, com apenas um pedaço de pão velho que lhe arranhava a garganta seca ao descer contorcido.
E a distante possibilidade de uma fagulha, sequer, de dignidade, desaparecera ao chegar das primeiras lágrimas já tão companheiras.
Que lindo!!!
ResponderExcluirEssa solidão é vivida atualmente por muitas famílias, se vc parar pra pensar, já não comemos mais todos juntos, ninguém agradece e esse momento tão sagrado fica desapercebido entre as garfadas e as deglutidas, muitas vezes dá mesmo vontade de desistir até do alimento pra viver o jejum da solidão.
Beijos
Cris.
E ainda, na correria do dia a dia, acabamos por tratar a refeição como uma simples adição de combustível (que se pudesse seria evitada). Outras vezes é preferível tratar dessa forma, assim dá para dispensar a preparação carinhosa que de nada e para ninguém servirá.
ResponderExcluirBeijos...
A melancolia da vida (sem sentido) quase sempre me assusta! No fundo, é como se todos nós fôssemos um pedacinho do seu tão bem descrito personagem... é como se vivêssemos fantasiando sonhos, metas, objetivos, mas na verdade o que nos resta é um prato com comida fria abandonado num canto da cozinha sem luz...
ResponderExcluirMuito bom, parabéns!
Realmente complicado, Vinícius...e cruel...é o tipo da coisa que acho que explica plenamente a palavra "deprimente" e que ninguém deveria sentir. Resto do resto, sob uma fantasia...concordo contigo!
ResponderExcluirGrande abraço...