segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Mansa Morada

Foi depois de muito trotar, de em encruzilhadas nos assustar, de valetas desviarmos, de riachos nos saciarmos e de novos caminhos arriscarmos, que avistamos a casinha.
Já não era mais mata do Caju, nem a do Bourbon e muito menos o Morro Alto.
Apressei-me nas rédeas e ela no galope ligeiro e macio, erguendo poeira na subidão batido.
Parou sozinha à entrada e, ainda sem fôlego, pôs-se a lamber o colonião maduro, como se eu lhe tivesse sussurrado onde eu pretendia apear.
Apeei!

Era meados de julho e já ventava como agosto,
O sol era esbranquiçado e morno, a sombra gelada como só lá.
O vento era seco e incessante, me arranhava gentilmente o rosto, ardia as narinas e ressecava a garganta,
Resfriava o suor do peito meu e do lombo dela – como tanto gostei e há muito não podia.

A casa já não tinha pintura, mas rachaduras.
As telhas se escoravam sacolejando umas as outras,
As janelas estavam podres e não mais preenchiam como antes.
Tijolos quebrados e desarrumados, cobertos por um grosso e gelado tapete de musgo velho, a circundavam revelando o que já fora um tímido calçamento.
O silêncio era atropelado apenas pelo colonião alto e denso que dançava e cantava ressecado ao balanço do vento, rodeando a grande paineira e preenchendo o vazio entre as paredes e os mourões frouxos que um dia recostaram cercas.

A sala era pequena e suja, mas aconchegante.
Restos de cortinas ainda pairavam sobre as janelas.
Uma estante larga e empenada, rejeitada pelos cupins, dividia o espaço com a velha cadeira de repouso de pano comido pelo tempo, sobre o soalho histérico.
Na cozinha, o velho fogão à lenha e a pequena pia de pedra estavam cobertos por poeira e ciscos de cana queimada.
Um pequeno banheiro à moda antiga fazia companhia ao único quarto,
Onde jazia uma velha cama de colchão de palha mofada e deformada.

Foram meses e meses de trabalho pesado, calos novos, feridas velhas e o mesmo eu:
As telhas foram recolocadas, o calçamento aprumado e o musgo raspado.
O colonião virou trato e estofado, a cerca remendada, e uma baia levantada.
As poeiras renovadas, os ciscos assoprados – ao menos até a próxima safra.
As tábuas repregadas, as janelas rematadas
E os restos das cortinas remendaram a velha cadeira, onde agora descanso.

Descanso em paz na entrada, sob a sombra da paineira,
Com minha xícara de café e o cigarro apagado,
Perdido no gélido entardecer alaranjado,
Sentindo no rosto outro vento julino – ou talvez agostino – que me presenteia com todo o meu passado temperado pelo saboroso cheiro da cana jovem.

A cama já está confortavelmente pronta, os lampiões cintilando abastecidos,
E a chaminé denuncia calmamente o fogão acordado que ainda mantém quente o feijão encorpado
Para, quem sabe, alguém que resolva se achegar, ao menos para o jantar!



30 comentários:

  1. Adoro cenas rurais com cavalos e trotes, com casas velhas, com poeira, típico interior antigo, aquele tempo gostoso onde a maldade ainda não tinha tanto espaço e vc recria o ambiente com elegância e personalidade.
    Muito lindo, Parabéns!!!
    Beijos
    Cris.

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  2. Bom, dessas cenas sou suspeito em falar, afinal, foram muitas delas...mas essa da casinha é uma coisa muito legal mesmo, pq juntei sensações que sempre gostei com uma visão que sempre tive...no mínimo aconchegante!

    Beijos tia...

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  3. Rafael!! Mandou muito bem!! Me senti na casa da fazenda. Quando falou do feijão até fiquei com fome!! :) Abraços!

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  4. Amigo Rafaiel,
    Essa é a história da grande parte da minha vida,ao ler seu post, é como estar revivendo outros tempos já passados.
    Depois comecei a construir eu próprio as paredes de minha casa,hoje sem musgo, e mais aconchegantes,

    obrigado pela postagem.
    um grande abraço

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  5. Muito lindo Rafa... e apesar de tudo, no fundo... alguém para conosco jantar é o que mais queremos...
    Beijos em ti

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  6. Fala cara!!

    Sério? Isso é bom, gosto quando meus textos podem ser "vividos" pelas pessoas, além de mim!

    Olha, o feixão tem bacon e paio, e é bem encorpado, tá a fim? Mas leva uma cervejinha..hehehe

    Abração!!

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  7. Que bacana, José!!

    Gostei de ter contribuído com essas lembranças e de saber que você pôde viver essa descrição.

    É...sem musgo, arrumadinha, no caso aqui, até desajeitadinha, mas minha, aconchegante e suficiente!

    Obrigado e um grande abraço,

    Rafael

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  8. Oi Joie,

    Sim, no fim preparamos tudo para esse alguém, a diferença aqui é que tudo foi preparado para nós mesmos, mas se vier o "alguém", será muito bem recebido...rs

    Beijos!!

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  9. Uma prosa linda, poética, cheia de pormenoras que os nossos olhos acompanham como se estivessemos lá...Sinto o cheiro da madeira ardendo na lareira, oiço o ruído da cadeira onde te sentas, quase dvinhando os teus pensamentos...
    Lindo, muito lindo!
    Um beijo.
    Graça

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  10. Olá Graça!

    Normalmente fico muito contente quando vejo que meus textos permitem essas sensações a quem os lê, mas nesse caso estou espantado e muito, muito contente pela sua descrição...isso é realmente muito gratificante!

    Fico contente pela visita!

    Um beijo...

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  11. Obrigado pela visita ao Livro amigo, muito bom seu blog, é sempre bom encontrar uma boa leitura, forte abraço e uma bela tarde.

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  12. Oi Rafael,
    Acredita que ainda vivo hoje essa cena em pleno sec XXI?
    A lenha queimando, feijão no fogo, cheiro de mato..

    Muito legal gostei do seu cantinho.

    Beijos meus

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  13. Olá Everson!

    Legal você por aqui...fico contente que tenha gostado...volete sempre!!

    []'s

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  14. Sério, Bandys???

    Me explica como chega...vou a cavalo também!!

    Que bom que gostou daqui, volte sempre!!

    Beijos...

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  15. Um belo dia pra ti amigo...forte abraço.

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  16. Olá Rafael!

    Agradeço muito a sua visita ao Falarteando, e também o seu comentário!
    Alegre surpresa o seu blog! Também gosto muito de imagens rurais e fiquei com saudade de um sítio que ainda não tenho! rs

    Até!

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  17. Olá Marina!

    Bom vc por aqui!

    É, desta vez arrisquei de imagem rural, e espero um sitio desse tb..rs.

    Mas seu blog foi uma grande descoberta. Imediatamente passei para meu amigo Robinson que, inclusive, o comentou no Twitter!

    Té...

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  18. OLá Rafael,
    Obrigada pela visita e ao mesmo tempo agradecida por ter-me dado a oportunidade de ler os seus textos magnificos.

    Quanto comecei a ler, entrei no seu mundo, é como se estivesse a reviver algo no passado.

    Muito bom mesmo!

    Beijos.

    Maria

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  19. Olá Maria!!

    Você me deixou sem palavras com esse comentário...fico muito, mas muito contente mesmo...que bom que tenha gostado!

    Seja sempre bem-vinda!!

    Beijos...

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  20. Vinha apenas para agradecer a sua visita ao meu blog e o comentário lá deixado. Dei um volta, ainda em diagonal, e tenho que aqui voltar.
    O seu é um blog cujos posts nos dão o prazer da leitura. Voltarei e comentarei.
    Um abraço

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  21. Há tempos minha imaginação não trabalhava tanto... Acabou o texto e eu percebi que não estava na casa da fazenda, era o meu quarto mesmo...

    Ótimo!!!

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  22. Há tempos minha imaginação não trabalhava tanto... Acabou o texto e eu percebi que não estava na casa da fazenda, era o meu quarto mesmo...

    Ótimo!!!

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  23. Grande Carlos!!

    Que bom que lhe agradou, fico muito contente com isso!

    E sim, volte sempre! É muito bem-vindo!!

    Grande abraço,

    Rafael

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  24. Oi Michele!!

    Gosto muito quando consigo passar imagens e sensações pelos meus textos, mas gostei muito de saber que deu para continuar mesmo depois da leitura!!

    Muito obrigado!!!

    Abraços..

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  25. Vim conhecer tua morada e amei o que encontrei.
    Nossa! Escreve muito bem.
    O penúltimoparágrafo deste texto é muito tocante.
    Para mim é ele que faz toda a história ter vida.Gostei de que tenha passado pelo meu Infinito.
    Com certeza passarei por aqui mais vezes.
    Beijinhos

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  26. Oi Malu!!

    TEm razão sobre o penúltimo parágrafo...pra mim, é nele que tenho a melhor visão e sensação da cena toda...quase que um "desejo"...

    Que bom que tenha gostado...volte sempre mesmo!!

    Beijos...

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  27. Viva meu caro.
    Agradeço a visita prestada no "Misantropia".
    A tua consideração deixada é acertada - provoca e implica indubitavelmente.

    Agradado por te agradar.

    Não me leves a mal a pergunta:
    Estas poesias são da tua autoria?






    Um grande abraço.

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  28. Grande Corvo!!

    Que bom que esteve por aqui...

    Sim, são de minha autoria. As que não são, são as de amigos que publico vez ou outra, mas isso é facilmente identificado pelos títulos, onde cito o autor original.

    Abraços,

    Rafael

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  29. boa prosa poética... fluída...!
    bacana! :)

    obrigada pela visita!
    o/

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  30. oi Rafaela!!

    Que bom que tenha gostado...e agradeço a visita!!

    []'s

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