Olás!!Há meses estou maturando um projeto para um novo livro e agora o primeiro passo foi dado: este ensaio piloto. Trata-se de uma obra com ensaios que estendam as definições de determinados substantivos abstratos, que se fazem fortemente presentes e determinantes no cotidiano das relações (preferencialmente amorosas), estritamente segundo a minha existência. A ideia é ser impessoal e produzir um ensaio para cada substantivo abstrato de uma lista que estou concluindo, seguindo a linha estrutural e estilística deste primeiro: Suficiência.Assim sendo, considerando este texto como exemplo, gostaria de poder contar com sua opinião sobre este projeto, seja respondendo a enquete "O que achou deste projeto?" na barra ao lado, seja registrando seu comentário/sugestão.Desde já, agradeço a todos...Abraços,Rafael
Suficiência
suficiência
su.fi.ci.ên.ciasf (lat sufficientia) 1 Qualidade de suficiente. 2 Quantidade suficiente. 3 Classificação escolar de suficiente. 4 Aptidão suficiente; habilidade. 5 Abastança material ou espiritual.* * *
Angustiantemente perseguida pelas partes em uma relação, tentando suprir quaisquer necessidades e expectativas da outra para que ambas fundam-se em uma só, para que se solidifique a relação e para que seja sufocada a insegurança de uma possível perda. Mas suficiência é o limite que determina a satisfação das necessidades e, por essência, provoca a geração incondicional de novas e o descarte das anteriores.
A novidade de uma nova relação vem acompanhada dos vazios dos envolvidos a serem preenchidos. Vazios que se justificam pelo simples fato de os envolvidos terem o mínimo de conhecimento um do outro e, naturalmente, estarem carregados de feridas, desejos e, principalmente, expectativas inevitavelmente omitidas. Ao desenrolar da relação, estes vazios são preenchidos, e a ligação torna-se cada vez mais sólida e agradável pela confiança adquirida entre as partes durante toda essa troca: a exposição e a satisfação incondicional das necessidades de um para com o outro ou, simplesmente, o preenchimento dos vazios.
Contudo, esta troca é um processo que se torna cada vez mais delicado e que deve ser tratado pelos envolvidos com zelo e consideração, especialmente nas relações amorosas, nas quais existe uma intensidade mais acentuada. Além da necessidade natural de aproximação, nas relações amorosas existem outras necessidades que se manifestam pelo desejo da presença um do outro em suas respectivas vidas. A descoberta e a satisfação entre e das partes neste tipo de relacionamento tornam-se necessárias de modo a estabelecer, o quanto antes, a fundamentação da relação, tanto pela insegurança da perda como pela ânsia em se fazer presente na vida um do outro, de maneira que se preencham os vazios, buscando a completude mútua, sendo um mais que suficiente ao outro. E é justamente por este motivo que se faz necessário o cuidado que deve ser atribuído a este processo.
Fazer-se suficiente é uma busca natural de ambas as partes por conta da atração sentimental que cresce entre elas. Querer o bem do outro é, antes de tudo, querer estar junto do outro, ou que o outro esteja junto com o um – seja lá a situação boa ou ruim. Ser suficiente é ser quisto, ser necessário, ser possível ao outro de maneira estável e confiável. Ser suficiente é o que permite o caminhar de cabeça erguida e peito aberto. É o poder olhar nos olhos com confidência e plenitude e transbordar-se sem palavra alguma. É o simples poder estar junto sem nada fazer, apenas compartilhando a existência mútua.
Suficientes são os casais idosos em que as partes sustentam a existência uma da outra após uma vida juntas. Suficientes são os jovens apaixonados que se prometem um ao outro, com brilhos nos olhos e corações palpitantes, para toda uma vida. Suficientes são amigos que depois de um longo tempo de amizade sabem o que se passa um com o outro através de um simples olhar. Suficientes são os cuidados despendidos pelas mães aos filhos.
Mas, justamente por satisfazer as necessidades e preencher os vazios dos envolvidos, é que a suficiência pode tornar-se, facilmente, uma arma contra a relação, levando-a a um declive quase que irreversível. A satisfação das necessidades de um pode acabar com os propósitos da existência do outro na relação; ou simplesmente anulá-lo e incorporá-lo como uma parte medíocre da rotina. Para expor melhor a ideia, olhemos para os envolvidos de uma relação e consideremos que um deles atinge a suficiência em relação ao outro. O momento que se segue ao se atingir esta suficiência, ambos estão em êxtase: o que buscava ser suficiente, por se tornar pleno, com elevado grau de importância, na relação; o que recebe esta suficiência, por ter suas necessidades satisfeitas e vazios preenchidos, enxergando o outro como sua fonte transbordante. Contudo, o segundo passa a não ter mais o que lhe instigar, o que procurar, o que sentir falta e isso faz com que o primeiro, que está, no mínimo, tentando manter sua conduta de sucesso, perca seu brilho e passe a ser um incômodo constante e que, por não ter mais o que satisfazer, não tem mais serventia clara e pode ser descartado. Em algumas situações, pode-se ter atingido a insuportabilidade, que pode até durar a vida toda; em outras, o fim propriamente dito e escarrado. Em ambas, o brilho e a intensidade com que tudo começou, as intenções e necessidades transbordantes de satisfazer que se faziam presente, e inclusive se justificavam, são simplesmente ignoradas como se nunca tivesse existido, quando muito, têm o seus fins justificados e conformados pela rotina, pelos caminhos que a vida toma, pela simples existência, como uma etapa qualquer no roteiro pré-definido da vida humana. Insatisfações são geradas, novas necessidades demandas e reclamações inventadas. E nesse turbilhão que se forma, um é lançado contra o outro, todos se machucam até que um resolve tirar o outro (ou sair) da relação.
Um pouco de saudosismos dos tempos iniciais ou dos sentimentos e necessidades de satisfação própria, ou para com o outro, funciona como adubo para a relação, de modo que um sempre se lembre dos porquês que permitiram que o outro fizesse parte da relação e pudesse assumir e executar, com prazer, suas tarefas de saciador de necessidades. E esse saudosismo deve ser concebido por todos os envolvidos, de maneira simples, mas constante. Olhares fazem isso muito bem, aqueles olhares que duram um instante, mas um instante que une profundamente as parte revelando todo o passado, todos os motivos para o serem. E também estes olhares devem ser permitidos e serem verdadeiramente recebidos, pois a rejeição, ou a não aceitação, ou a imposição, culminam no estrangulamento dos sentimentos alheios, e a suficiência destratada faz exatamente isso: descarta grandes descobertas, seca!