Meu pai sempre criou canários e vez ou outra o via realizando procedimentos, digamos, veterinários. Entreguei o coitado para meu pai pensando que ele poderia “colar” novamente a perna do pobre coitado. Não teve jeito. Após exames minuciosos, veio o diagnóstico: teremos de amputá-la! Fiquei um bocado chocado, pois só pensava em qual seria o jeito que meu pai daria para “colar” a tal da perna do bem-te-vi. Em momento algum pensei numa amputação. Mas, sem quase eu perceber, meu pai cortou o que restava da pele. Eu me retorci, ele fez um curativo simples no que restou da perna e colocou o bem-te-vi em uma gaiola com comida e água à vontade, se virou para mim e disse para o deixarmos sozinho, me explicando que ele melhoraria.
Os dias seguintes eu passei ansioso. Visitava o bem-te-vi antes da escola, depois da escola, durante as tardes, no começo da noite, e antes de dormir. Sempre tentava me certificar de que o curativo havia sido feito, de que ele estava se alimento e bebendo água, de que estava se equilibrando bem e de que seu olhar estava menos penoso.
Mas os tais dias seguintes foram poucos e rápidos. No último deles, meu pai me chamou e disse: Ele já está bom, vamos soltá-lo!
Fiquei sem reação. Por mais que soubesse que um dia iríamos soltá-lo, não esperava que fosse naquele, ou talvez, de alguma forma, em algum lugar, acreditava que nunca iríamos soltá-lo, que ele seria meu, que eu poderia cuidar dele pelo tempo que durássemos. Mas nada fiz, nada disse, apenas acompanhei meu pai até o quintal que colocou a gaiola em uma mureta, abriu a portinha, pegou o bem-te-vi, tirou-o da gaiola e abriu a mão.
Não me lembro para qual lado ele foi, mas lembro de que ele saiu voando imediatamente, entusiasmado como se nunca tivesse se machucado. Voou sem olhar para trás, sem agradecer e logo desapareceu. Não cheguei a ficar triste, foi tudo muito rápido e eu estava um tanto atrapalhado com tudo; mas senti uma sensação boa, uma sensação de ter feito algo certo, de ter ajudado, de ter cumprido um papel importante na vida daquele bem-te-vi, o meu bem-te-vi manco.
Nunca soube o que aconteceu com ele, nem haveria como. Mas desejei e, acima de tudo, acreditei que ele tivesse ficado bem. Mas, ainda mais acima de tudo, aquele dia me mostra hoje que a vida segue, que cada um segue, que todos seguem e que tudo passa. Aquele dia me mostra hoje que havemos de viver saboreando o que pudermos de bom de tudo o que passamos, havemos de sorrir mesmo que tímidos ou entre lágrimas, havemos de voar por nossos sonhos e por nossas ternas lembranças, havemos de fazer valer a pena. Aquele dia me mostra hoje que foi o meu bem-te-vi manco que teve um papel importante na minha vida e me ensinou a não ser mais o cativo do tal do Bilac.
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Já que citei, fica a dica da poesia "Pássaro Cativo" do Olavo Bilac.