Ele permaneceu alguns minutos em silêncio contemplando o que via e tentando entender o que acontecia. Voltou-se ao anjo que permanecia paciente ao seu lado e perguntou se aquele lugar era como o vale. O anjo respondeu:
– O vale é apenas um simples recanto de descanso para poucos vencedores. Atrás das muralhas está o que não pode ser descrito, o que não pode ser contado e só pode ser permitido àquele que acredita e busca. Aquele que é maior que o vencedor: digno!
– E o que é necessário para poder adentrar àquelas muralhas?
Desta vez o anjo virou-se gentilmente a ele e com um olhar gracioso lhe respondeu:
– Somente aquele que percorre todo o caminho, que passa por todas as provações, com coração aberto e dedicado às palavras, sem desviar um instante, sem deixar-se levar pela mais inocente das tentações, sem duvidar, dedicando-se ao que lhe foi prometido, à sua missão, sem pisar no negro lodo pagão, sem aspirar a imunda poeira do desejo, sem beber envenenada água da vontade, sem provar do suculento fruto do pecado: é o verdadeiro digno de adentrar àquelas muralhas e degustar de tudo aquilo que somente os que lá estão poderiam descrever.
– E sou digno? É por isso que me trouxeste aqui? Para adentrar às muralhas?
O anjo suspirou desgostoso e olhando para as muralhas, com a visão embaçada, respondeu duro:
– Não! Tu nem ao menos estás perto do teu caminho. Trouxe-te aqui porque te foi concedida uma nova chance de percorrer o caminho. E estou te mostrando qual é o fim do caminho. Sinta-se abençoado, pois poucos são aqueles que sequer viram estas muralhas.
– E qual é esse caminho?
O anjo virou-se novamente a ele e disse mais contido:
– Acalma-te e atenta-te! Não é tão simples quanto pensas! Terás que começar antes mesmo da floresta. Terás que cruzar os mares a braçadas, vencer a ira das piores tormentas já vistas, vencer os mais temidos monstros marinhos, sozinho. Não haverá calmaria, calmaria é para os fracos. Se tiveres fé, se acreditares, se te entregares e não desviares, somente assim, chegarás à praia!
“Na praia não poderás ficar, o mar não permitirá e terás que avançar pela floresta. Verás o caminho. Conhecerás o chão e não verás as copas. Sentirás o ar sufocante, o calor que não se dissipa. Passarás por lugares onde nem a mais corajosa e astuta luz passa, serás perseguido por criaturas famintas, enfrentarás aberrações, serás tentado por aqueles que se aproximarão gentilmente e que foram esquecidos pelo caminho. Atravessarás pântanos escaldantes, rios venenosos, matas espinhosas. Não terás nada para comer, sentirás a maior de todas as fomes e somente o pecado será oferecido como alimento, pela mão que trai. E a escuridão só terminará quando do outro lado da floresta saíres. Mas se te desviar, não mais encontrarás o caminho e vagarás como aqueles que tentarão tirar-te do caminho. Se tiveres fé, se acreditares, se te entregares e não desviares, chegarás ao vale!”
“No vale poderás ver a luz, poderás descansar, mas em nada tocar. Dos animais não poderás te saciar, nem das frutas provar, muito menos das águas beber. Sentirás a brisa e saberás que está no caminho, mas não muito poderás ficar. Basta um descanso e um fôlego, pois aqueles que ficarem em demasia são os que se contentam com pouco e não são dignos do que está atrás das muralhas. E esses serão jogados de volta para a floresta e proibidos de retornarem ao caminho e esquecidos pela eternidade.”
“Terás que continuar montanha acima! Se arrastarás pelo gramado que dará lugar a trepadeiras espinhosas que se agarrarão em ti para fazê-lo tropeçar, escorregar, cair. Chegarás aos rochedos úmidos e lisos, terás que te agarrar a eles com as próprias unhas e passar por entre pontas afiadas que te abririam o peito em um simples encostar. Deslizarás! Mas deverás continuar para chegar ao paredão. Nele procurarás por trincas finas que não permitirão o encaixe seguro do teu menor dedo. E no fim, o paredão te engolirá em uma inclinação invertida. Ficarás pendurado pelas mãos injuriadas. E após o paredão será uma íngreme subida, sem rochas, mas neve alta. Estarás acompanhado pelo mais terrível de todos os frios. Não terás agasalhos e terás que passar por toda a tempestade sozinho, sem nada enxergar. Se tiveres fé, se acreditares, se te entregares e não te desviares, chegarás ao cume e verás essa rocha onde nos estamos e nela deverás sentar-te e esperar. Enquanto esperas, serás digno de contemplar a imensidão dos mares, a vastidão e o esplendor das florestas e a alegria e perfeição do vale. E quando o tempo certo chegar, e os guardiões da muralha entenderem que tu és digno, anjos virão em tua busca para a recompensa eterna. Do contrário, bolas de fogo serão lançadas sobre ti para rolá-lo montanha abaixo.”
“Tenha fé! Este é um caminho de uma vida, para torná-lo digno da outra, a prometida, a tão buscada!”
Tendo dito isso, o anjo sorriu para ele e com um toque macio, fechou-lhe os olhos.
Quando abriu-os novamente, estava na igreja, ainda ajoelhado e desacreditado. Mas quando ergueu a cabeça e olhou para as imagens do altar, começou a tremer e a sentir-se assustado por duvidar, arrependido por sua vida, amedrontado por não ser digno e envergonhado de si mesmo. Começou a rezar desesperadamente, de cabeça baixa aos soluços, por perdão e pela concessão de uma última chance para que pudesse percorrer o caminho e tornar-se digno.
Foi então que sentiu um toque firme de uma mão áspera cuidadosamente repousada em seu ombro esquerdo.
Continua...
Parte I - Parte III
É de se pensar... será que tanto sofrimento pode trazer a dignidade? A espiritualidade aflora por entre as tormentas da vida e nós pobres humanos vamos enfrentando marés e monstros marinhos por todo o caminho, seria a nossa mente o nosso maior inimigo? e como chegamos ao equilibrio, precisamos encontrar o graal?
ResponderExcluirLindo demais!
Beijos
Cris.
É...e esse sofrimento é imposto, como sendo necessário uma vida (que talvez seja a única) de sofrimentos para ter a chance de participar de algo prometido. E se não tiver?
ResponderExcluirBeijos!!