Levantou o rosto aterrorizado, preparando-se para ser punido pela súbita dúvida que sentira, seu corpo tremia em descontrole total, temendo que lhe fosse negada aquela última chance. Virou-se lentamente, com olhos suplicantes e transbordantes, cabeça baixa e corpo completamente curvado pela vergonha, mal conseguia ver a silhueta da imagem a sua frente.
A outra mão, também grosseira de aparência, calejada, com dedos peludos e unhas negras e compridas, tocou-lhe o queixo com uma delicadeza indescritível: podia-se sentir levemente a aspereza da pele sobreposta quase que totalmente pela doçura pueril do toque que lhe elevava a cabeça. E o medo que lhe abandonava aos poucos, liberou-se quase que totalmente ao ouvir as palavras suavemente proferidas:
- Não tenhas medo!
Ele firmou a cabeça e abriu os olhos encharcados que tiveram que ser secos pelas próprias mãos que os julgavam duvidosos frente à imagem que se definia: um demônio alto e musculoso, coberto por uma pele cor de oliva que se misturava sob pelos e escamas, pequenos chifres despontavam entre os cabelos longos e negros, sobrancelhas grossas sobre olhos amendoados pretos e profundos, uma longa calda escamosa e lisa repousava parte no chão, um sorriso tão sarcástico quanto confiável e um par de asas enormes e repugnantes como as de um dragão cuspidor de fogo.
- Venha comigo! – disse o demônio com uma voz encantadoramente tranquilizante.
Parte de seu medo o retomou. Seguir o anjo era como trair e abandonar a chance que lhe fora dada e ele hesitou. O demônio entendia o que se passava e já de costas para ele disse, com a mão ainda puxando a dele:
- Não te preocupes. Eles sabem que estou aqui. É minha vez e é assim que funciona!
Inseguro e incerto do que estava fazendo, ele deixou-se levar pelo demônio e notou que desta vez seus passos eram inúteis, pois flutuava até a porta da igreja. E o mergulho lhe causaria menos pânico se não fosse pelo seu condutor ser quem era.
Mergulharam no branco da porta da catedral a uma velocidade absurda e assustadoramente deliciosa. Tão rápidos e inclinados ao chão caiam que as sensações se misturavam: pavores arrancadores de entranhas, anonimato sob a face remodelada pelo vento que parecia dilacerar-lhe em pedaços, rejeição ao corpo leve pela alma pesada diante da liberdade de uma queda praticamente livre ao nada; o toque do demônio fazia com que ele mal se lembrasse que estava sendo levado.
E quando, depois de tanto cair, ele se preparava para ver o azul tomar cena por entre o branco indefinível, um laranja avermelhado, quase fogo, se precipitou. Era ondulado como o mar, só que, além da diferente textura, as ondulações não ondulavam – apenas eram.
Ele engoliu seco e pressentiu algo muito ruim, que lhe tomou a voz a ponto de apenas olhar em desespero para o demônio sem nada conseguir perguntar. O demônio continuou seu vôo sem olhar para ele, sabendo o que se passava, mas preferia com prazer ignorar. Aproximaram-se do chão na mesma inclinação a que vinham descendo, sem nivelar para o pouso e, súbita e confortavelmente, reduziram a velocidade e estrondaram ao chão arenoso, como que em um anúncio de chegada.
O demônio soltou a mão dele e deu um passo a frente, contemplando a vista. Fora a forma que usara para deixá-lo um pouco só para que pudesse organizar suas dúvidas. A vista era a mesma em todas as direções. Areias e dunas desfiguradas pelo calor eram as mesmas em todas as direções, com as mesmas sombras em todas as direções, tudo exatamente igual para onde fosse que se olhasse. O calor era escaldante e prejudicava o pensamento, mas não lhes queimava os pés. Ventos sopravam de todas as direções para onde estavam, trazendo areias, calores e lembranças.
Ele permaneceu alguns instantes parado, depois examinou perplexo a simetria da paisagem em todas as direções. O demônio aguardava pacientemente, em um gozo interior extraordinário pelo que estava por vir. E quando ele deu um passo em sua direção para lhe dirigir a palavra, em um simples gesto, o demônio parou todos os ventos. Ouvia-se apenas um leve e contínuo ruído causado pelo intenso calor que ainda emanava do chão refletor. Ele, com dificuldades em ignorar o que acabara de presenciar, deu mais um passo e pôs-se ao lado do demônio:
- Este é o inferno?
O demônio gargalhou prazerosamente com toda a graça do mundo aos idênticos quatro cantos e sua gargalhada ecoou de uma maneira que pareciam outras gargalhadas que esmagavam a pergunta. Então, recompôs-se e virou-se para ele com um sorriso amistoso de um pai prestes a ensinar o jovem filho:
- Não, meu caro, aqui não é o inferno! E creio que não temes o inferno, pois é nele que tens vivido seus últimos anos. Este é apenas um lugar. Um lugar qualquer!
Ainda confuso com a declaração de que o inferno era onde vivia, ele continuou:
- Um lugar qualquer, no meio do nada? Por que me trouxeste aqui?
Então sereno, o demônio lhe explicou com olhos aos olhos:
- Pensas que o inferno em que vives é uma punição, uma condição; quando na verdade é uma opção. Tu és o responsável por viveres o que vives, por seres o que és. Tu és quem permitiu que tudo isso te acontecesse, que tudo isso se formasse em torno de ti, sendo o teu mundo, o teu dilema, a tua reclamação, a tua lamentação, o teu martírio, se preferires! Mas ninguém se importa e nunca se importará! Tens que entender e aprender a andar sobre tuas próprias pernas sem em nada escorar. Tens que aprender a te levantar sozinho, como fizera aos primeiros passos. Tens que olhar para dentro e ver o que realmente é e o que provavelmente seria e, acima de tudo, o que realmente desejas ser. Isso não é o inferno, nem o fim, é um lugar qualquer!
- Agora entendo o que queres dizer. Aprendi logo há pouco o que realmente é preciso para atingir as muralhas prometidas, o como posso me tornar digno de, ao menos, perto delas chegar e, quem sabe até, a elas adentrar, se assim quiserem os céus. Entendo que me trouxeste aqui para me mostrar o que pode acontecer comigo: ser jogado ao nada, ao esquecimento. Agora tudo faz sentido para mim. Tens razão, tenho que me erguer e continuar sozinho pelo caminho, sendo forte e acreditando!
Concluiu estas palavras com uma expressão de satisfação e temor frente ao entendimento de toda situação e do difícil caminho a ser seguido. Mas o demônio não permitiu que aquela sensação durasse e interveio em tom mais firme:
- Não entendeste nada! Não aprendeste nada! Sim, realmente precisa ergue-te e continuar, sozinho. Mas por que pensas que tem que ser por aquele caminho. Por que acreditas que tens que te sacrificar, te entregar e abandonar todo o gozo de uma vida intensamente vivida? Abandonar as alegrias, tristezas, dificuldades, perdas, conquistas, decepções e recompensas de uma vida verdadeiramente vivida para chegar a um lugar que te foi dito como prometido, que nem ao menos sabe se conseguirás chegar ao começo do caminho e, ainda, quem sabe, se chegares nem sabes se te permitirão a entrada? Para que te meteres em um caminho dito como correto, onde na verdade só existem provações para serem superadas? – Por acaso cometeste um crime ao nascer e que agora necessita ser pago com a maior das penas: tua própria vida? – Para que te submeter às mais indiscutíveis e cruéis imposições e condições para chegar ao mundo prometido de onde ninguém sequer voltou ou escreveu para atestar sua existência? De onde nem mesmo seus prometedores te mostraram sequer uma folha seca abandonada aos ventos? Para que acreditar em algo tão inacreditável? Para que te privar das delícias, dos prazeres da vida que somente podem ser saboreados pelo corpo e sentidos que te foram dados? Para que uma vida de tristezas, sofrimentos e preparação para um lugar que nem mesmo os céus garantem a existência? Para que abrir mão da chance de simplesmente ser feliz? Atenta-te a ti mesmo! Seja filho de ti! Criatura de ti, criador!
- Tudo está confuso para mim. Como queres que acredite em ti depois de tanto mal que causaste ao mundo? Como posso acreditar que o que dizes já não é minha primeira tentação, ainda aqui neste lugar? Tudo está confuso!
Naquele momento o demônio sorriu satisfeito e levantou vôo. Voou em círculos sobre ele que perguntou desesperado sobre aonde ia, pedindo que não o deixasse naquele lugar. O demônio em alta voz lhe respondeu:
- Estou deixando-te onde sempre estiveste, em um lugar qualquer. Estou tirando-te a tua chance e dando-te a opção.
- Como assim? Não podes me deixar aqui, como saberei onde está o meu caminho? Ao menos leve-me até ele! Diga-me como percorrê-lo, como ser digno de percorrê-lo por completo, passando por todos os obstáculos!
- Este é o teu caminho. Não vês que todas as direções são iguais? Não vês que tens todas as direções para seguir? Não vês que o único obstáculo é tu mesmo que ainda permanece parado frente a tantas opções? Não vês que é digno de escolher para onde ir?
Neste momento o demônio pairou a sua frente e concluiu:
- O que realmente importa aonde teu caminho te levará? Somente tu podes trilhar teu caminho. Somente tu podes decidir aonde chegar. Podes e deves fazê-lo da forma que quiseres, para onde quiseres – és livre. Basta seguires o caminho! Faça-o!
Então, ao vê-lo transformar as lágrimas em sorriso infantil, deixando para trás as primeiras pegadas, o demônio voou satisfeito de volta aos céus.
Parte I - Parte II
Ao Robinson Milani, meu grande amigo que me contou sobre o caminho!
o texto retrata que o mal pode ser o bem e que o bem pode ser o mal, mas que as decisões estão em nossas mãos, nós temos a capacidade de controlar tudo, nossos medos, nossas emoções e o nosso desejo de vencer. Mas, vencer o que? onde está escrito que temos que ser vencedores? Existe um caminho certo? Eis aí uma questão a se pensar.
ResponderExcluirQue viagem em Rafa!!!!
Mil beijos, adorei tudo isso.
Cris.
Rsrsrs...é tia..isso que dá eu não tomar meu remédinho de manhã...ahuahuaha
ResponderExcluirMas acho que é essa a idéia, fazermos nossos padrões independente do que e como digam que deva ser feito e, ainda, definindo quais são nossos bens e maus.
Fico muito feliz que tenha gostado!
Beijos....
Obrigado Rafael pela dedicatória. Eu adoro essa história sobre o caminho. Quem me ensinou tudo isso é a mulher que eu amo! Ai ai ai!!
ResponderExcluirUm grande abraço do seu amigo do peito!!
Rafael,
ResponderExcluirMuito bom! E nem li a I e a II (vou ler), mas foi um bom final. E no seu comentário disse bem de não seguir as "verdades absolutas" - bens e maus estabelecidos em pacotes prontos. Ainda mais que estão sempre de plantão as tiranias e suas falsas ideologias, preceitos, preconceitos, subserviências, a querer dominar corações e mentes. Na liberdade de ser, no respeito ao próximo, na troca de idéias encontraremos os melhores caminhos,certo? Abraço/ney.
Sério, Ney?
ResponderExcluirQue bom que gostou...e gostei de saber desta visão...ainda não tinha visto essa situação, mas tomara que goste também das outras partes. Eu acho que me perdi um pouco do foco na última parte, mas tá valendo..rsrs
Mas a idéia é essa mesma: acabamos deixando de viver, deixando para trás coisas que podem ser a nossa grande razão por questões, maneiras e costumes impostos!
Temos que dar um jeito..rs
Grande abraço!!